domingo, 9 de março de 2008

Ulisses

Bicicleta perdida em São Miguel dos Milagres, AL. Talvez Ulisses tenha passado por lá...



“Ulisseeeeeeeeeeeeeesssssssssss!!!!”. Esse era o berro que mais se ouvia quando Ulisses estava por perto. Um grito sempre sentido, raivoso, descontrolado. O mesmo grito que a mãe dera quando o menino nasceu, a caminho do hospital, em meio a um acidente de trânsito. Ela pariu o nome, pariu a dor e, de Ulisses, então, o menino foi chamado.
Ulisses era uma dessas presenças que se dizia estranha. Ele tinha um ar despretensioso e demasiado vago. Ele parecia ter uma insignificância que torturava. Tudo parecia incomodar-se quando ele estava perto.
Quando bebê, ninguém gostava de segurá-lo. Não que não fosse uma gracinha, era. Mas, quem quisesse chegar perto, acabava escorregando no tapete do quarto, batendo a cabeça em parte do berço ao abaixar-se para pegar o menino, ou levando uma quente, longa e mal cheirosa mijada. Foi então que começaram os gritos e terminaram as visitas.
A mãe de Ulisses vivia em lágrimas. Uma coitada. Não entendia a estranheza da presença de seu filho, ele era tão manso, tão calmo, tão querido... Quando o moleque foi aprender a andar de bicicleta na rua de casa, as crianças vizinhas tiveram que desistir. Desequilibravam-se, caiam, machucavam-se. Ele não tinha amiguinhos.
Na escola, Ulisses era o quase típico desengonçado do fundão da classe. Mas ele pouco falava e muito observava. E, desengonçadas mesmo, ficavam todas as coisas ao seu redor. No primeiro dia de escola da sua vida, assistiu à professora despencar do tablado quando convidava os pequenos a apresentarem-se, e era justamente a sua vez. Ele ficou sentido com aquilo.
Ulisses cresceu assim. Sua presença era desconcertante. Era copo que quebrava, comida que queimava, carro que batia, pneu que furava, chuva que caía, goteira que molhava. Era fato para muita prosa. E ele nunca colocava a mão em nada. Nem antes, nem durante, nem depois. E só se ouvia “Ulissessssssssss!!!!”.
Ele parecia não ter muito cheiro, seus olhos brilhavam muito e ele não gostava de mostrar os dentes. Seu sorriso era quase de cabeça baixa, com uma força incrível que tentava manter os lábios semi-cerrados.
Ninguém nunca soube o que Ulisses pensava, sobre tudo, sobre nada.
Um belo dia, logo depois que sua mãe morreu, encontraram a casa vazia. Lá havia apenas um bilhete. Nele estava escrito “Eu não sei.”, assinado com o nome de Ulisses, com vários ‘e’ e vários ‘s’, seguidos de exclamações, como um grito, um berro sentido, como ele sempre fora chamado.
Depois disso, a vizinhança voltou a ser feliz.

Um comentário:

Xisto Bueno disse...

Nossa... adorei! Vc sabe mesmo contar uma história. Isso é o que eu sempre tentei e nunca consegui. Vou tentar aprender contigo.
Beijinho, moça.