segunda-feira, 17 de março de 2008

O Doce Lulando

Tão doce quanto bolo de chocolate...

Lulando era um doce de pessoa. Tinha um sorriso que conseguia mostrar todos os dentes e arrancar gargalhadas alheias. Doce que era, jamais conseguia ser amargo. Jamais conseguia dizer não.
A mulher de Lulando ficava enfurecida. Era preciso saber dizer não de vez em quando. Ela mostrava como era, ele não conseguia repetir. E, assim, a “sim”, Lulando vivia.
Certa noite, em uma festa, a filha adolescente, a mais nova do casal, estava aos beijos com seu namorado em um canto. Os pais já iam embora, era hora. A mãe, enciumada e com certa irritação, pediu que Lulando fosse até lá e “desse um jeito” na situação. Era serviço de pai. Pulso firme. Hora de ir para casa.
Lulando, ordenado, encheu-se do espírito. Fez uma cara de poucos amigos. Pisou firme. Caminhou, firme, sim, mas levemente pendendo para um lado, até onde o jovem casalzinho estava. Olhou, duro.
- Diga, painho. O que é?
- Filha! – com a voz ainda firme e o olhar já descrito.
- O que é?
- É... é...
(pausa)
- Filha! (voz de veludo) Você precisa de alguma coisa? Chave do carro? Um dinheirinho?
- Não painho.
- Então já vou. Boa noite. Qualquer coisa liga, hein?!
- Sim.
Ele adocicou. Colocou no rosto um sorriso meio amarelado. Mas ficou satisfeito. Virou as costas e saiu andando. Dessa vez, apenas pendendo para o lado.

segunda-feira, 10 de março de 2008

O Suicida

E Evan achou que seria levado ao descanso eterno...



Aquele homem chamado Evan (e não Ivan) – a quem simplesmente chamarei de “ele” – havia passado toda a tarde de sábado tomando cerveja com os amigos. Mesmo com a cabeleira já invadida pelos fios brancos, aquele senhor mantinha o frescor da juventude tão visível quanto os sinais no tempo.
Com os reflexos já prejudicados pelas horas imersas no álcool, ele voltou para casa. No seu apartamento no oitavo andar, não havia ninguém. Nem sua mulher, nem seus dois filhos. Apenas luzes a serem acesas. Aquele vazio, aquela escuridão e a visão turva fizeram-no estranho. Sentou-se na sala, sem ânimo para apertar interruptores, e começou a pensar. E sentiu uma agonia enorme, uma tristeza moribunda, um presságio assustador.
“Vou morrer”, ele pensou. Então, calmamente, ali sentado, ficou esperando a morte. Os relógios caminharam minutos, e nada da morte chegar. Ele é impaciente, esperar nunca foi dos seus melhores atributos. Andou até a sacada, olhou a cidade de poucas luzes e o chão, distante. Ninguém passava na rua. Agonia crescendo. Pensou em jogar-se dali. Ele já sabia que iria morrer, só iria fazer passar aquela sensação, logo.
Apoiou-se no parapeito e, pronto para jogar-se, lembrou. “As crianças! Não posso morrer assim, preciso esperar minha esposa chegar para combinar algumas coisas sobre as crianças...”. Voltou ao sofá e colocou-se a pensar nas crianças, ambas com mais de 20 anos.
Deve ter pensado em comer algo também. Detestaria morrer de estômago vazio. Algum pouco tempo depois a esposa abriu a porta, entrou. Admirou-se com ele, ali, no escuro, sentado da sala. Ouviu:
- Queridinha, eu vou morrer. – costumava chamá-la assim, no diminutivo.
- Sim, eu sei, todos nós vamos morrer. – ela, com seu humor sempre afiado, soltou. Talvez por saber das cervejas. Talvez por conhecê-lo melhor que ele mesmo.
- Estou falando sério, vou morrer. E vai ser agora. Só estava esperando você chegar para combinar umas coisinhas sobre as crianças, deixar tudo ajeitado para vocês. Senhas, dinheiro, compromissos, essas coisas todas.
- Eu acho que a gente precisa medir sua pressão.
- Isso, pode medir, aí você vai saber: estou morrendo.
Ela entrou para o quarto e pegou o aparelho. Voltou para sala e mediu a tal pressão. O silêncio voltou a ser quebrado.
- 12 por 8. Incrível! Você nunca esteve com a pressão tão boa! Que maravilha!
- Impossível...
“Impossível!!!”. Ele ficou pensando como poderia morrer se a pressão estava tão boa. Ele não poderia estar redondamente enganado, não podia, jamais estava errado!
- Ok, tudo bem. Mas eu vou morrer. Quer ver? Meça minha glicose.
Ela mediu. Um pouco de insulina e estaria tudo normal. Ele estava muito bem. Já acostumada, ela teve paciência.
- Queridinha, eu não vou morrer?
- Não, você não vai morrer - ria ela.
Então ele, que aguardava a morte apenas com as roupas de baixo, arrastou-a para o elevador do prédio.
- Que isso??!! – espantou-se, pela primeira vez, ela.
- Vamos fazer sexo no elevador. Nunca fizemos, vai ser hoje. Antes que eu morra de verdade.
Com receio dos vizinhos, ela puxou-o de volta para casa. Riu. Deve ter dado um banho gelado nele. E ele dormiu que nem uma pedra, cheio de vida.

domingo, 9 de março de 2008

Ulisses

Bicicleta perdida em São Miguel dos Milagres, AL. Talvez Ulisses tenha passado por lá...



“Ulisseeeeeeeeeeeeeesssssssssss!!!!”. Esse era o berro que mais se ouvia quando Ulisses estava por perto. Um grito sempre sentido, raivoso, descontrolado. O mesmo grito que a mãe dera quando o menino nasceu, a caminho do hospital, em meio a um acidente de trânsito. Ela pariu o nome, pariu a dor e, de Ulisses, então, o menino foi chamado.
Ulisses era uma dessas presenças que se dizia estranha. Ele tinha um ar despretensioso e demasiado vago. Ele parecia ter uma insignificância que torturava. Tudo parecia incomodar-se quando ele estava perto.
Quando bebê, ninguém gostava de segurá-lo. Não que não fosse uma gracinha, era. Mas, quem quisesse chegar perto, acabava escorregando no tapete do quarto, batendo a cabeça em parte do berço ao abaixar-se para pegar o menino, ou levando uma quente, longa e mal cheirosa mijada. Foi então que começaram os gritos e terminaram as visitas.
A mãe de Ulisses vivia em lágrimas. Uma coitada. Não entendia a estranheza da presença de seu filho, ele era tão manso, tão calmo, tão querido... Quando o moleque foi aprender a andar de bicicleta na rua de casa, as crianças vizinhas tiveram que desistir. Desequilibravam-se, caiam, machucavam-se. Ele não tinha amiguinhos.
Na escola, Ulisses era o quase típico desengonçado do fundão da classe. Mas ele pouco falava e muito observava. E, desengonçadas mesmo, ficavam todas as coisas ao seu redor. No primeiro dia de escola da sua vida, assistiu à professora despencar do tablado quando convidava os pequenos a apresentarem-se, e era justamente a sua vez. Ele ficou sentido com aquilo.
Ulisses cresceu assim. Sua presença era desconcertante. Era copo que quebrava, comida que queimava, carro que batia, pneu que furava, chuva que caía, goteira que molhava. Era fato para muita prosa. E ele nunca colocava a mão em nada. Nem antes, nem durante, nem depois. E só se ouvia “Ulissessssssssss!!!!”.
Ele parecia não ter muito cheiro, seus olhos brilhavam muito e ele não gostava de mostrar os dentes. Seu sorriso era quase de cabeça baixa, com uma força incrível que tentava manter os lábios semi-cerrados.
Ninguém nunca soube o que Ulisses pensava, sobre tudo, sobre nada.
Um belo dia, logo depois que sua mãe morreu, encontraram a casa vazia. Lá havia apenas um bilhete. Nele estava escrito “Eu não sei.”, assinado com o nome de Ulisses, com vários ‘e’ e vários ‘s’, seguidos de exclamações, como um grito, um berro sentido, como ele sempre fora chamado.
Depois disso, a vizinhança voltou a ser feliz.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Cheia de Vida


Eu canso de ouvir “detesto aniversário”. Pouco respondo. O que é difícil, já que quando uma opinião oposta chega a mim eu rebato com força. Acho que é porque, instantaneamente, eu me perco no pensamento “adoro aniversário!”. E gosto mesmo. Por isso, exatamente próximo da virada para o dia 6 de março, escrevo sobre meu 23º ano de vida.
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23 anos! Já!
Acredito que quase todos se espantam com o tempo, rápido. E ele é ótimo, justamente por surpreender. Ele é sócio das doces e saudosas lembranças. Ele nunca esquece de ninguém. Derruba, mas cura. Ensina. Chacoalha.
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Hoje eu quero soprar velas e comer bolo. Ganhar presentes. Ouvir “parabéns”. Abraçar e ser abraçada pelos queridos. Receber telefonemas dos queridos distantes. Ouvir boa música. Tomar Cerveja. Dançar. Eu quero lembrar de 23 anos bem vividos e sonhar com mais 23 e mais 23 de paixão pela vida e entusiasmo. Pois eu adoro viver, adoro sorrir e adoro o tempo, meu mestre.