domingo, 14 de setembro de 2008

Música clássica em Mato Grosso

Orquestra de Mato Grosso em concerto no Mercado do Porto em 30 de agosto. Foto: Protásio de Morais

No último 7 de setembro publiquei no Correio uma entrevista que fiz com Leandro Carvalho, maestro da Orquestra de Mato Grosso. É o post de hoje. Um pouco extenso mas vale a pena ler! Aí vai...

Um notável nome na cultura mato-grossense: Leandro Carvalho

As apresentações já nem são tão necessárias. Leandro carvalho, maestro da Orquestra de Mato Grosso, já conseguiu lançar seu nome - e o da orquestra - por todo o Brasil. Quem dirá aqui na região... Saindo das salas fechadas de concerto, ele ganhou as ruas, as escolas, as fábricas, as praças e até o Mercado do Porto, onde, no último dia 30, a Orquestra fez um de seus concertos mais especiais e inusitados. E, assim, no melhor dos sentidos, Leandro caiu na boca do povo. O Correio foi bater um papo com ele, na tentativa de explorar um pouco mais esta personalidade. O resultado? Tivemos que sair do padrão e fazer, de maneira inédita, uma “capa dupla” para esta edição! Criatividade é contagiante...


Leandro, como foi o seu processo de “despertar” para a música e como foi a transição para a vida profissional?


LC - Minha infância foi cercada de músicos. De mestres violeiros, como Adauto Santos, passando por João Pacifico, ao Maestro Eleazar de Carvalho. Meus pais, mesmo médicos, sempre foram amigos de músicos e gostavam de reuni-los em casa para saraus que varavam a madrugada. Meu primeiro mestre foi Turíbio Santos. Cheguei até ele pelas mãos do Maestro Eleazar de Carvalho. Irônico porque naquela época eu nunca poderia imaginar que a regência me esperava. Meus pais foram amigos do casal Eleazar e Sônia Muniz (pianista e segunda esposa do Maestro). Com quatorze anos, o Eleazar me convidou para ser solista da OSESP, sob sua regência, num concerto especial a ser realizado no Memorial da América Latina. Tocamos algumas adaptações de Bach para violão e cordas que o próprio Eleazar fez. Depois disso, o Eleazar pediu ao amigo Turíbio que me ouvisse. Naquela altura, o Turíbio dava pouquíssimas aulas particulares e abriu uma exceção. Fui com meu pai para o Rio de Janeiro para tocar para o Turíbio. Chegamos em seu apto, era uma tarde bonita, céu azul. Meu pai foi logo para a varanda e começou a reparar nos pássaros e nas plantas, enquanto eu reparava no Turíbio e ele em mim. Depois de algumas músicas o Turíbio propôs que eu aprendesse uma série de exercícios técnicos e um longo repertório para o mês seguinte. Após essa primeira etapa, ele daria o veredicto. Trinta dias depois, fui sozinho ao Rio com os cinco prelúdios e o Choro n.1 de Villa-Lobos, algumas danças da Suíte em mi menor para alaúde de Bach, mais uma tonelada de exercícios técnicos debaixo dos dedos, tudo de cor! O Turíbio gostou e foi dizendo: “Bom, então para o próximo mês ....”. E ai começou uma longa amizade, com muito respeito e admiração, concertos e três discos em parceria, com destaque para “O Guarani” que gravamos em duo em 1999.

O seu sucesso com a música veio com sua carreia de violonista. Gravou nove cd’s, fez concertos em todo o Brasil e Europa... Teve mestres como o Turíbio Santos, um dos grandes violonistas brasileiros. Enfim, tinha tudo para continuar essa carreia. O que te fez mudar de rumo e buscar outros desafios?


LC - Sempre vi o violão como uma ‘ferramenta’. O objetivo sempre foi a música. Para mim a mudança foi natural, necessária. Mesmo não tocando mais violão, nunca fiz tanta música como agora.


Você graduou-se em Música Erudita em São Paulo e depois foi para a Holanda. Como foi esta experiência fora do Brasil?


LC - O período na Holanda foi muito enriquecedor. Foi muito difícil também. A adaptação foi traumática. A Holanda não é o país que pensamos. Eles vendem uma imagem que não corresponde à realidade. Ou melhor, vendem uma imagem turística de um país moderno, liberal, dinâmico e tolerante. Depois de algum tempo vivendo no país, com passaporte europeu (!), vi que ‘o buraco é mais embaixo’. Muitas universidades e conservatórios europeus de destaque estão com salas vazias por falta de alunos. Em música, a situação é grave. É por isso que estas instituições fazem promoções no exterior para atrair talentos. Além de estudar regência, continuei me dedicando à carreira de violonista. Como meus Cds vendem razoavelmente bem na Europa, fui procurado por alguns empresários e acabei fazendo concertos em locais de grande prestigio como o Royal Festival Hall, em Londres. Lembro de receber convites para concertos em 2007. O problema é que estávamos em 2002! Fiquei chocado com isso. Nesta época, comecei um trabalho com o quinteto de cordas inglês ‘Britton String Quintet’, formado por jovens britânicos extremamente talentosos. Gravamos o disco ‘London Poem’, fizemos muitas turnês no Brasil e no Reino Unido. Um ano após o encerramento da última turnê, eu estava à frente da Orquestra do Estado de Mato Grosso, o violoncelista David Gardner aceitou o desafio de levantar a Orquestra comigo e também se mudou para Cuiabá para liderar o naipe de violoncelos, o violista Thomas Beer estava à frente do naipe de violas da Orquestra The Halle, na Inglaterra, e a violinista Rebecca Allan, meia inglesa, meia alemã, havia ingressado na Filarmônica de Berlim. O mundo dá piruetas!

No seu mestrado em História Social, em Pernambuco, você teve a orientação de Ariano Suassuna, um grande defensor da cultura brasileira, da cultura popular. Como foi sua experiência em PE? Esse contato com Ariano teve influência no que você faz hoje na Orquestra de MT, misturar o erudito ao popular?


LC - Minha ida para Pernambuco se deu numa atmosfera idílica. Eu estava em busca do Brasil de Villa-Lobos. Achava que ainda existia. Queria me aproximar da cultura popular nordestina. Quando fui lançar meu primeiro CD “João Pernambuco o Poeta do Violão”, em Recife, em 1997, conheci Ariano e surgiu a oportunidade de continuar meu trabalho sob sua orientação. Conhecer a literatura ‘básica’ sobre o Brasil ajudou muito a me adaptar ao ambiente acadêmico das ciências humanas. O porquê do meu interesse por isso deve ter a ver com meu pai, Turíbio, João Pacifico e as pessoas com as quais convivi desde criança. Sobre o “Eurdito X Popular” eu diria que, para nós músicos, existe pouca distinção entre música ‘isso’ ou música ‘aquilo’. Popular, erudito, brasileira, e outros, são conceitos que se rarefazem na medida em que nos aprofundamos no estudo da música (ou em outras linguagens). No entanto, na hora de organizar uma temporada de concertos e estabelecer as diretrizes artísticas de uma orquestra, é preciso levar em consideração uma série de fatores. Em Mato Grosso, por exemplo, definimos uma nova estrutura para os concertos: em vez do tradicional, ou seja, primeira e segunda parte, com aproximadamente 50 minutos cada, com um intervalo de 20 minutos, decidimos fazer apenas uma parte de 70 minutos, começando sempre com uma peça ‘séria’, do repertório universal. Após este primeiro momento de muita concentração por parte da orquestra e do público e de silêncio absoluto, entram as violas de cocho e a percussão e partimos para outro repertório, com peças mais curtas baseadas na cultura popular brasileira e sul-americana. O resultado é um público anual, apenas em Mato Grosso, em torno de 150.000 pessoas.


Você foi um dos criadores da Orquestra em 2005. Hoje, a Orquestra goza de destaque nacional, pela voz da crítica e pela voz do povo. Recentemente, acabaram de chegar da turnê Sonora Brasil, passando por 22 estados brasileiros. A que você atribui esse destaque de uma Orquestra tão nova, tão recente? Como funciona a administração da Orquestra?


LC - O sucesso da Orquestra é uma somatória de muitos fatores, começando pela vontade do poder público em criar e manter um grupo de alto padrão, neste caso o Governo do Estado chefiado pelo Governador Blairo Maggi. A partir desta percepção, sensibilidade e atitude, reunimos um grupo de empresas sérias e preocupadas com o desenvolvimento social do Brasil para patrocinarem a Orquestra. Desde 2005, a estrutura de gestão da Orquestra foi se aperfeiçoando para chegar hoje num modelo próximo do ideal, semelhante as melhores orquestra do mundo. A estrutura de uma orquestra é uma coisa complexa e pode ser comparada à estrutura de grandes corporações. Mesmo numa orquestra de câmara, como é nosso caso, você tem um corpo de funcionários em torno de cinqüenta pessoas, dentre músicos, produtores, administradores, arquivista, montador, além do serviço terceirizado de contabilidade e comunicação. Toda a complexidade das relações de trabalho está no dia a dia da Orquestra. É preciso também saber se relacionar com os patrocinadores (cada empresa tem uma maneira diferente de trabalhar e espera resultados específicos do investimento realizado) e com o Governo Estadual e Federal. As relações políticas também fazem parte do nosso dia a dia. É preciso agüentar muita pressão para garantir que a ‘carruagem’ não se assuste com o ladrar dos cães. A Orquestra tem o Governo do Estado na base de sua sustentação e as empresas Votorantim, Nortox e Bimetal como patrocinadoras. Além disso, várias outras empresas nos dão apoio em forma de serviços, com destaque para a Localiza e para o Sesc Mato Grosso. Em 5 de julho de 2007, foi publicado o decreto governamental reconhecendo a Orquestra do Estado como OS – Organização Social da Cultura. Desta forma, o relacionamento da Orquestra com o Estado regula-se através de um ‘contrato de gestão’, dando mais segurança e sustentabilidade para o desenvolvimento dos trabalhos. Vejo isso como uma importante conquista da sociedade. È para ela que trabalhamos! Os maestros e os músicos passam, mas a Orquestra continua. È importante ganhar força para resistir às transições políticas.


Você foi apontado como um dos dez artistas de maior importância na música clássica da década, pelo Anuário Viva Música 2008. O mais jovem da lista. O único fora dos grandes centros. O que isso representa para você? E o que isso deve representar ao público?


LC - É uma honra receber uma indicação como esta, vinda da mais importante publicação do setor. Recebo este reconhecimento em nome de um grupo de profissionais sérios e comprometidos com seu trabalho. São dezenas de músicos e gestores que trabalham diariamente para fazer com a Orquestra do Estado de MT alcance um patamar de excelência. O reconhecimento deste trabalho nos dá ânimo para continuar a caminhada. Ressalto ainda que, com destaques desta natureza, o nome do Estado de Mato Grosso começa a ser veiculado na mídia nacional relacionado à música, ao desenvolvimento humano e a excelência. É uma contribuição importante para melhorarmos a imagem deteriorada, em vários aspectos, do Estado no imaginário brasileiro.


Pela sua história, é possível ver que é um homem de desafios. Quais serão os próximos?


LC - A Orquestra do Estado de Mato Grosso caminha para ser uma das melhores orquestras do Brasil. Parece uma afirmação pretensiosa, mas essa é a vontade dos músicos e do público da Orquestra. E não apenas ‘do maestro’. Estruturamos o trabalho da Orquestra com foco na democratização do acesso à cultura. Ressalto que este direcionamento não se dá em detrimento à qualidade técnica e artística ou a seleção de um repertório interessante. Analisando o comportamento das orquestras no Brasil e observando atentamente a ‘ascensão e queda’ de grandes orquestras européias percebi que muita coisa estava faltando. Era preciso se libertar do convencionalismo retrógrado das salas de concerto. Encontramos em Mato Grosso um ambiente propício para experimentarmos uma proposta diferente. Após três anos de trabalho, levamos ao coração de São Paulo e apresentamos para um público habituado a freqüentar salas de concerto e ver grandes orquestras. O resultado foi ótimo. Acredito que o futuro, ou melhor, a sobrevivência da música ‘clássica’ depende da reformulação radical de conceitos por parte, principalmente, dos maestros e administradores. Os patrocinadores já têm outra cabeça e vão procurar orquestras que tem o foco no homem comum e não necessariamente naquela meia dúzia de freqüentadores ‘nariz empinado’ das salas de concerto. Mais uma vez, o foco deve estar na descentralização e na democratização. E uma orquestra deve ser vista como um patrimônio da população, algo que traga orgulho e se relacione diretamente com os valores da comunidade. Os maestros passam, os músicos passam, os governantes mudam, mas, de geração em geração, a orquestra atende a população e preserva valores fundamentais para aquela sociedade.

* Quem quiser saber mais sobre a Orquestra de Mato Grosso e conferir a programação de concertos, pode acessar o site www.orquestra.mt.gov.br.